Para ilustrar alguns conceitos durante a terapia, costumo recomendar leituras para meus analisandos. E, como não poderia deixar de ser, os contos que integram o livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, da junguiana Clarissa Pinkola Estés, são recorrentes nas sessões em que os pacientes também estudam a teoria junguiana. E, por algum tempo, a história “Vasalisa, a Sabida”, era um desses contos. A ideia era analisar o simbolismo da boneca na psique feminina.
“Coincidentemente” uma paciente com quem eu não estava trabalhando este conto, sonhou que ganhava de um amigo três bonecas de pano muito lindas… O sonho trouxe para esta moça uma sensação muito agradável de conexão com seu “eu verdadeiro”, como ela mesmo disse. “O sonho não tem nada de especial. Mas, o fato de ganhar aquelas bonecas tão bonitas de alguém tão importante, me fez sentir uma conexão muito grande comigo mesma e com algo além de mim”, comentou emocionada.
Essa sincronicidade entre o sonho de uma paciente que não tem contato algum com a teoria junguiana e as atividades que estavam sendo feitas com as outras analisandas fez com que eu percebesse como o símbolo da boneca atua na psique quando começamos a trabalhar a intuição e os instintos femininos.
Vasalisa é um conto russo sobre a iniciação da mulher. Para ler o conto, acesse o o link. A história trata da percepção de que a maioria das coisas não é o que parece e que, ao ser iniciada, a mulher recorre à sua intuição e aos seus instintos para farejar a verdade, guardar seu fogo criativo e ter a compreensão dos ciclos da vida.
O conto fala sobre a transmissão da bênção do poder da intuição das mulheres de mãe para filha, de uma geração à outra. Sabemos que, com o Patriarcado, este poder foi esquecido e enterrado por gerações e gerações. No entanto, segundo Jung, na psique nada jamais se perde e pode voltar à tona através da consciência.
Nesta história, a boneca tem um papel central, pois é um presente que a mãe entrega à filha antes de morrer. A bonequinha se veste como Vasalisa e tem todas as feições da moça. Ao entregar a boneca à filha, a mãe a abençoa com a intuição. Resta à menina realizar as tarefas para que o processo de iniciação se complete. Para ler sobre as tarefas que Vasalisa tem que completar, veja em um outro texto que fiz sobre o conto.
A boneca de Vasalisa pertence às provisões da Velha Mãe Selvagem. As bonecas são um dos tesouros simbólicos da natureza instintiva. A autora nos conta que, durante séculos os seres humanos tiveram a sensação de que das bonecas emanava algo de sagrado e de maná – um pressentimento irresistível e impressionante que influencia as pessoas, fazendo com que mudem espiritualmente.
A boneca representa os homunculi simbólicos, a pequena vida. É o símbolo do numinoso e está sufocado nos seres humanos. É uma réplica pequena e luminosa do Self original. Aparentemente, podemos ver que o objeto que Vasalisa leva em seu bolso é apenas uma boneca. No entanto, existe nela um pequeno fragmento da alma que possui todo o conhecimento do Self maior da alma.
A boneca também está relacionada ao símbolo dos duendes, do elfo, da fada e dos anões. Nos contos de fadas, eles representam uma profunda pulsação de sabedoria dentro da cultura da psique. A boneca assemelha-se ao passarinho dos contos de fadas que vem sussurrar no ouvido da heroína sobre como enfrentar as adversidades do caminho.
Segundo Clarissa Pinkola Estés, as bonecas representam o espírito interior das mulheres: a voz da razão, do conhecimento e da conscientização íntima. “Ele é quem revela o inimigo oculto e a atitude a tomar diante da situação. Essa é a sabedoria do homunculus, o pequeno ser interior. Ele é ajuda que nem sempre está visível, mas que está sempre disponível”, comenta.
No conto, a mãe de Vasalisa proporcionou um grande privilégio à filha ao vincular a menina à boneca. O vínculo com nossa própria intuição propicia uma grande confiança que resiste a tudo. Ele muda a atitude de uma mulher de “o que será, será” para uma atitude de “quero ver tudo o que há para ser visto”.
No conto, vemos que Vasalisa tem que alimentar a boneca, ou seja, nutrir a intuição. Em nossas vidas, alimentamos nossa intuição quando ouvimos nossa voz interior e seguimos o que ela diz. As bonecas servem de talismãs, como se fossem lembretes do que é sentido, mas não visto; do que existe mas não é de evidência imediata. O numem do talismã é o que nos recorda, o que nos diz, o que vê adiante de nós. Essa função intuitiva pertence a todas as mulheres. É uma receptividade maciça e fundamental.
O que a intuição faz pelas mulheres? Permite que a mulher tenha uma consciência mais astuta e, até mesmo, premonitória. A intuição permite que sua feminilidade seja aguçada e promove maior capacidade de se movimentar com confiança no mundo exterior.
No conto, o momento em que Vasalisa mais tem que escutar sua intuição é quando ela está no escuro, na mata e não pode fazer mais nada a não ser prestar atenção à voz interior que provém da boneca. Ela está aprendendo a confiar nesse relacionamento e, também, a alimentar a boneca – sua intuição.
Como alimentamos a boneca no nosso dia a dia? Ela se alimenta de vida quando nós prestamos atenção a ela. Nutrimos nosso Self intuitivo quando prestamos atenção a ele e agimos de acordo com sua orientação. A intuição é como um músculo, se não a usamos, ela atrofia.
Algumas perguntas que só a intuição pode responder corretamente: “Devo ir para esse lado ou para outro?”; “Devo ficar ou partir?”; Devo resistir ou ser flexível?”; “Devo fugir disso ou ir na sua direção?”; “Essa pessoa, esse acontecimento, essa empreitada, é verdadeira ou falsa?”.
A autora do livre “Mulheres que Correm com Lobos” afirma que quando a mulher tem a sensação de nunca ter tido insights intuitivos, que ela não pense que sua intuição está destruída, mas que a confiança intuitiva não foi passada de mãe para filha. Ou a transmissão em consequência de algum rompimento nesse processo foi fraca. “Mas com exercício ela poderá se restaurar e se manifestar em sua plenitude”, explica Clarissa.
E você? Ouve sua intuição? Dá atenção a ela ou prefere dar atenção aos pensamentos mais racionais? Como vimos no conto, a intuição é algo a ser trabalhado, como nossos músculos na academia, para que não atrofie.