O conto “O Patinho Feio”, de Hans Christian Andersen, tem muito a nos ensinar sobre inclusão, autoestima e a procura da nossa turma. Afinal, a sensação de exclusão pode afetar drasticamente o amor-próprio, pois a construção da identidade se dá, também, pelo meio em que vivemos e pelo reconhecimento que recebemos. Para ler o conto no íntegra, acesse o link.
E, é na família onde se inicia este processo inclusivo, é neste âmbito que as pessoas geralmente se descobrem como iguais, ou diferentes. Na história “O Patinho Feio” é possível enxergar essa busca por integração e por sua própria turma.
No conto, um ovo de cisne casualmente foi parar junto de um ninho de patos. E, então, após o nascimento desta ninhada, todos acharam o cisne muito estranho e diferente e logo o chamam de Patinho Feio. Triste e sozinho, o Patinho Feio foge e encara diversos desafios na natureza selvagem.
“O Patinho Feio”, publicado pela primeira vez em 1845, trata do arquétipo do ser incomum e desvalido. De acordo com Clarissa Pinkola Estés, em “Mulheres que Correm com os Lobos”, o autor escreveu dezenas de histórias sobre o arquétipo do órfão. Ele foi um importante defensor da criança perdida e negligenciada, e dava imenso apoio à ideia da procura e descoberta do nosso próprio grupo. Para facilitar a análise do conto, contarei passagens da história e, em seguida, farei a associação com a teoria junguiana.
A rejeição à criança diferente
A narrativa inicia-se com o nascimento dos patinhos após a mãe Pata chocar com muito orgulho todos eles. No entanto, o ovo maior continuava inteiro no ninho. A mãe Pata continuou chocando e, de repente, o ovo se abriu e dentro dele saiu um patinho cinza. Todos logo perceberam que ele era muito diferente e muito desengonçado e logo ficou conhecido como Patinho Feio.
Seus irmãos e irmãs estavam felizes na fazenda, mas o Patinho Feio não. Ele não conseguia se adaptar ao ambiente e ter conexão com aqueles que seriam sua família. Essa situação é terrível porque o Patinho na realidade não fez nada que justificasse esse comportamento, a não ser ter a aparência diferente e agir um pouco diferente dos outros. Na verdade, temos, nesse caso, um Patinho com um enorme complexo psicológico.
Segundo Clarissa Pinkola Estés, o Self básico da psique foi ferido desde cedo e, assim, o indivíduo acredita que as imagens negativas dele mesmo, refletidas pela família e pela cultura, são não só totalmente verdadeiras, mas também totalmente isentas de preconceito, de influência da opinião e de preferências pessoais. O indivíduo começa a acreditar que é fraco, feio e inaceitável, e que isso continuará a ser verdade, não importa o esforço que ele faça para reverter a situação.
De acordo com a autora, nem a alma, nem a psique do indivíduo, podem aceitar essa situação. A pressão no sentido de se “adequar” pode perseguir o indivíduo até que ela fuja para longe, para um mundo oculto ou para vaguear muito tempo à procura de um lugar para se abrigar e viver em paz.
A rejeição materna ao Patinho, tão evidente nesta primeira parte, é um fenômeno chamado pela Psicologia Junguiana de complexo materno. Jung explica que um complexo é uma reunião de imagens e ideias, conglomeradas em torno de um núcleo derivado de um ou mais arquétipos, e caracterizadas por uma tonalidade emocional comum. Quando entram em ação, os complexos contribuem para o comportamento e são marcados pelo afeto, quer uma pessoa esteja ou não consciente deles. Para ler mais sobre complexos, veja no link.
Neste conto, percebemos que a mãe pata tem alguns atributos que geram um complexo materno no Patinho. De acordo com a análise da autora, esses atributos decorrem do fato dela ser, ao mesmo tempo, três tipos mãe: mãe ambivalente, mãe prostrada e uma mãe-criança ou mãe sem mãe. Vamos à análise dessas características:
A mãe ambivalente
É uma mãe dividida em termos psíquicos, o que faz com que ela seja puxada em várias direções diferentes, o que é a própria definição de ambivalência. A mãe pata quer cuidar do filho, mas isso começa a prejudicar sua segurança na própria comunidade. “A princípio sua mãe o defendia, mas com o tempo até ela se cansou daquilo tudo”, afirma Estés. Observa-se que quando o indivíduo tem essa imagem de mãe ambivalente na sua própria psique, ele pode se descobrir cedendo com muita facilidade, com medo de firmar uma posição, de exigir respeito, de afirmar seu direito a fazê-lo, de aprender, de viver de seu próprio modo.
A mãe prostrada
Esta mãe caracteriza-se pela desistência em cuidar do seu filho diferente. No conto, é quando a mãe pata exclama para o patinho que preferia que ele desaparecesse. “Como eu queria que você fosse embora – exclamou exasperada.” De acordo com a autora, quando uma mãe desiste de cuidar de seu filho, isso significa que ela perdeu o sentido de si mesma. Ela pode ser uma mãe perversamente narcisista que se sente no direito de ser criança também. É provável que ela tenha sido isolada do seu Self selvagem e que tenha entrado em prostração, forçada por alguma ameaça real, de ordem psíquica ou física.
Assim, quando o indivíduo tem a imagem da mãe prostrada dentro de sua Psique e/ou da sua cultura, ele é indeciso quanto ao seu valor. Ele pode considerar que as escolhas entre cumprir exigências exteriores e as exigências da alma são questões de vida ou morte, o que é uma sensação relativamente normal para a pessoa “diferente”, mas o que não é normal é ficar sentado chorando, sem fazer nada.
A mãe criança e a mãe sem mãe
Uma mulher com uma mãe criança interna assume a aura de uma criança que finge ser mãe. Ela não é capaz de orientar e apoiar seu filho, mas como as crianças da fazenda na história do Patinho Feio, que sentem uma alegria intensa por ter um animalzinho em casa, mas não sabem cuidar direito dele, a mãe-criança tortura seu filho com diversas formas de atenção destrutiva e, em alguns casos, falta de atenção.
Como explica Clarissa, às vezes a mãe frágil é ela mesma, um cisne criado no meio dos patos. Ela não conseguiu descobrir sua identidade verdadeira cedo o suficiente para ajudar sua prole. Embora possamos interpretar a mãe na história como um símbolo da nossa própria mãe exterior, a maioria dos adultos tem agora uma mãe interior, como sua mãe verdadeira. Trata-se de um aspecto da Psique que atua e reage de um modo idêntico ao da experiência da infância de um indivíduo com sua própria mãe. Além do mais, essa mãe interior compõe-se não só da experiência da mãe pessoal, mas também de outras figuras maternas de nossas vidas, bem como as imagens da “mãe boa” e da “mãe perversa” exibidas pela nossa cultura, na época da nossa infância.
Para a maioria dos adultos, se houve algum problema com a mãe concreta no passado, e elas não existem mais, ainda há uma cópia da mãe na Psique, que age, reage e fala igual à tenra infância. Muito embora a cultura do indivíduo possa ter desenvolvido um raciocínio consciente do papel das mães, a mãe interior terá os mesmos valores e ideias a respeito de como uma mãe deve ser e agir que vigoravam na cultura na nossa infância.
O isolamento como dádiva
Continuando a história, chegamos ao ponto em que o Patinho Feio, diante de tanta rejeição, resolve ir embora. Ele passa pela porteira da fazenda e continua o mais rápido que seus pés desajeitados conseguem.
Para Marie Louise Von-Franz, a fuga para lugares distantes significa a busca de aproximação do inconsciente, sendo a solidão o caminho para esse encontro. Algo que centralizava os interesses externos passa a centralizar os interesses internos, indicando ao indivíduo o caminho da transformação e da oportunidade de encontro com o verdadeiro Self.
O Patinho Feio corre muito, até encontrar um grande pântano. Estava com frio e com medo, mas logo encontrou um lugar carregado com nuvens pesadas, por causa do outono. O Patinho Feio estava muito triste e se sentia só, pois não tinha amigos. Sempre que encontrava outras aves e animais, todos riam dele e o mandavam embora, por ele ser tão grande e feio.
O inverno chegou e, uma noite, o vento do norte soprou tão frio que o lago congelou. “Um dia de manhã, o patinho se descobriu preso no gelo e foi aí que ele sentiu que ia morrer… Felizmente, um lavrador passou por ali e libertou o Patinho, quebrando o gelo com seu cajado”.
Na história, o fazendeiro se fez passar por um suposto salvador, mas logo em seguida deu o Patinho para seus netos, que riam dele e o maltratavam, acentuando ainda mais seu sentimento de raiva e rejeição e fazendo com que fugisse novamente.
Nesta parte da história, é interessante observarmos que a pessoa que podepossa nos tirar do gelo, que até mesmo nos liberte em termos psíquicos do nosso congelamento psíquico, não vai ser, necessariamente, aquela a cujo grupo pertencemos.
Observe que o Patinho vai de um lugar a outro buscando um lugar onde pousar, repousar e ser aceito. Apesar de não estar plenamente desenvolvido seu instinto para detectar exatamente aonde ir, o instinto de vaguear até encontrar o que ele precisa está em perfeito funcionamento. No entanto, a autora explica que, às vezes, ocorre uma espécie de patologia na Síndrome do Patinho Feio e a pessoa continua batendo nas portas erradas, mesmo depois de más experiências.
Aguarde e confie
Agora, vamos para a terceira parte da história. Até o momento, vimos que o Patinho arriscou sua vida por um fio. Ele já se sentiu só, frio, congelado, acuado, perseguido. Já atiraram nele, já desistiram dele. Ele já se sentiu desnutrido, longe, fora de todos os limites, no limiar entre a vida e a morte, e sem saber o que iria acontecer depois.
Então, chega a primavera e começa uma vida nova, uma reviravolta, uma nova oportunidade de tentar. Certa manhã, o Patinho acordou e viu o sol brilhando e os pássaros cantando. De repente, três grandes pássaros pousaram no lago. Eles eram como os belos pássaros que o Patinho Feio tinha visto no outono.
Quando os três cisnes se aproximaram dele, o Patinho Feio abaixou a cabeça envergonhado. Tinha certeza de que eles o perseguiram por causa de sua feiura. Mas quando viu seu reflexo na água clara do lago, teve uma grande surpresa. Não era mais um Patinho Feio, era um lindo cisne. Sempre fora um cisne.
Vemos no conto importância do símbolo do pato e do cisne neste processo. Pela psicologia analítica compreende-se que a escolha desses animais não foi por acaso. O pato é um animal fronteiriço, ele vive tanto na água quanto na terra. Ele é, por isso, um mediador entre os dois mundos: consciente e inconsciente.
Já o cisne é um animal que simboliza a fidelidade, a origem da vida e dos seres humanos, alternando entre o elemento feminino fecundado ou o elemento masculino fecundador. Portanto, podemos observar que no conto o processo de individuação é o encontro com a totalidade, representada pelo cisne. Já que ele sintetiza as duas luzes, solar e lunar, se mostrando um ser andrógino. Essa é a meta do processo de individuação: o equilíbrio dessas duas luzes, dessas duas forças: masculina e feminina.
No momento final do conto, o Patinho Feio se uniu ao grupo de cisnes e, finalmente, pôde ser feliz. Esse momento pode caracterizar a passagem da condição de doença para a condição de saúde, como também à volta para casa. Na teoria Junguiana, a cura se dá a partir da estruturação do Self; simbolizando o encontro com o verdadeiro “eu”.
Em se tratando de vida real, existem muitas pessoas por aí com a Síndrome do Patinho Feio. E, qual seria a solução para elas? Agir como o patinho. Seguir em frente e superar todas as adversidades com muita luta e persistência. Além disso, começar a praticar o que de melhor existe dentro de si. Como na história, os cisnes reconhecem que o Patinho Feio é um deles. Colocando em prática seus dons e talentos, mais cedo ou mais tarde, todos encontram sua tribo.
E, você? Já se sentiu excluído? Conseguiu superar e encontrar sua turma? Compartilhe sua história. Ela pode ajudar outras pessoas em situações parecidas. 😊😏