O mito na psicologia analítica de Jung

 

 

Para compreender o mito e sua função na psicologia analítica de Jung, é necessário entender o que é o mito. Do grego, mythos refere-se a uma narrativa cujo objetivo é explicar a origem e existência das coisas e transmitir conhecimentos. Os mitos são relatos orais muito antigos que remetem a personagens sobrenaturais e extraordinários – como deuses, monstros e heróis – em que estes realizam grandes feitos. Com o passar do tempo, os detalhes desses relatos vão variando e as histórias ganhando versões diferentes.

O mito também tem a função de apresentar algo forte e explicar coisas que eram inexplicáveis ao homem da época. Além disso, os mitos eram incontestáveis, pois os deuses estavam acima de qualquer questionamento. Os mitos mais conhecidos são aqueles da mitologia grega, como os Titãs, deuses do Olimpo, o Minotauro, os Centauros, entre outros.

As divindades gregas eram dispostas em uma hierarquia e seus deuses, apesar de dotados de maiores poderes, mais beleza, perfeição e imunes ao tempo, eram semelhantes ao homem no que diz respeito ao amor, ciúmes, inveja, entre outros sentimentos humanos. A mitologia, por sua vez, é o conjunto dessas histórias fantásticas.

Joseph Campbell, no livro “O Poder do Mito”, diz que a mitologia é a canção do Universo e que dançamos essa música mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.  Segundo o autor, mitos são aquilo que os seres humanos têm em comum, são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos. São metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida, animam a vida do mundo.

A partir desta definição, percebemos a relação entre mitos e arquétipos, pois os mitos são uma forma de expressão dos arquétipos. No livro “Complexo, arquétipo e símbolo”, de Jolande Jacobi, os conteúdos arquetípicos acompanham a estrutura psíquica do indivíduo na forma de possibilidades latentes, tanto biológicos como históricos. “Cada arquétipo é sempre atualizado de acordo com a vida exterior e interior do indivíduo e, ao receber forma, aparece na frente da câmera da consciência, ou como diz Jung, é “representado” diante da consciência.”

Ainda segundo Jolande Jacobi, em “Von den Wurzeln des Bewusstseins. Studien über den Archetypus As raízes da consciência. Estudos sobre o arquétipo”, “os arquétipos não podem se difundir universalmente pela tradição, pela linguagem e pela migração, mas ressurgem espontaneamente em todo lugar e a qualquer época, sem intermediação externa (…) essa constatação não significa nada menos que em toda psique estão presentes disposições, formas inconscientes, mas, apesar disso, ativas, isto é, vivas (…) que preformam e influenciam instintualmente seus pensamentos, sentimentos e ações.”

Nesse sentido, dizemos que os arquétipos são o conteúdo psíquico do inconsciente coletivo – que contém em si todos os conteúdos da experiência psíquica da humanidade. Ou seja, os arquétipos são uma forma de pensamento universal com grande carga afetiva e dão origem às fantasias individuais e, também, aos mitos.

Podemos dizer, então, que as figuras mitológicas são arquétipos do inconsciente coletivo que encontraram nos mitos uma maneira de se expressar. Assim, a mitologia é um caminho para melhor compreendermos o inconsciente pessoal à medida que descobrimos qual mito estamos vivendo em determinado momento. Os mitos não dependem da crença para existirem, pois existem por si próprios e alimentam a psique humana.

Um dos mitos mais conhecidos é o Mito do Herói. O herói é um arquétipo baseado na superação dos obstáculos para completar determinadas tarefas, como encontrar um tesouro, matar o dragão ou resgatar a princesa. No âmbito psicológico, esses obstáculos representam conteúdos inconscientes que devem ser superados a fim de restaurar a energia psíquica, liberando a energia que está represada no inconsciente.

No livro o “Heroi de Mil Faces”, Joseph Campbell nos apresenta a Jornada do Herói, também chamado de Monomito, em que o heroi passa por 12 estágios para concluir sua missão. Estes passos são os seguintes:

– Mundo comum: o mundo normal do heroi antes da história começar;

– O chamado à aventura: um problema que o heroi tem que resolver o chama para a aventura;

– Demora ou Recusa em aceitar ao chamado: o heroi recusa ou demora em atender ao chamado por sentir medo;

– Encontro com o mentor ou ajuda sobrenatural: o heroi encontra um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua aventura;

– Cruzamento do primeiro portal: o heroi abandona o mundo comum para entrar no mundo especial ou mágico;

– Provações, aliados e inimigos ou Adentrar no ventre da baleia: o heroi enfrente testes, encontra aliados e enfrenta inimigos;

– Aproximação da caverna oculta: o herói tem êxito durante as provações;

– Provação difícil ou traumática: a maior crise da aventura, a prova mais difícil de todas;

– Recompensa: o heroi enfrentou a morte, se sobrepôs ao seu medo e ganha uma recompensa (elixir);

– O caminho de volta: o heroi deve voltar ao mundo comum;

– Ressurreição do heroi: o personagem sai vivo da aventura mais não é mais o mesmo, pois foi transformado pela jornada.

– Regresso com o elixir: o herói volta para casa com o elixir e o usa para ajudar todos no mundo comum.

Podemos transportar o Mito do Heroi para muitos filmes e romances, afinal, esta jornada está no inconsciente coletivo e, por isso mesmo, serve como estrutura para inúmeros roteiros de filmes e é garantia de muito sucesso.

Um exemplo é o filme “Guerra nas Estrelas”:

  1. O mundo comum: Luke Skywalker vive com seus tios em Tatgooine;
  2. O chamado à aventura: mensagem da princesa Leia para Obi-Wan Kenobi;
  3. A recusa da aventura: Luke fica com seus tios para ajudar na colheita;
  4. Encontro com o mentor: após o assassinato dos tios de Luke, Obi-Wan o encoraja a seguir viagem, conta sobre os Jedis e lhe da o sobre de luz;
  5. Cruzamento do primeiro portal: a fuga de Tatooine. Luke encontra com aliados como Han Solo e Chewbacca e também com Jabba, um inimigo;
  6. Aproximação da caverna oculta: a invasão da Estrela da Morte par resgar a princesa Leia. Luke e seus aliados quase são mortos;
  7. Recompensa: resgate da princesa;
  8. O caminho de volta: a perseguição durante a fuga da Estrela da Morte;
  9. Ressurreição: com o auxílio da Força, ele destrói a Estrela da Morte. É seu início como um Jedi;
  10. O retorno com o elixir: a cerimônia da vitória.

O conhecimento sobre os mitos e a jornada do heroi são essenciais na prática clínica junguiana pois, a partir dele, o terapeuta pode compreender melhor o momento que o paciente está vivendo e ajuda-lo a ressignificar a experiência.

Um exemplo disso seria aquela pessoa que procura a terapia junguiana e, após algumas sessões, o terapeuta percebe que ela está vivendo algum mito específico. Podemos citar como, por exemplo, uma mulher que chega ao consultório reclamando muito das lutas diárias, como se estivesse vivendo uma eterna batalha e que não consegue se sentir feminina.  O analista pode chegar à conclusão de que essa moça está vivendo o Mito das Amazonas.

Este mito conta a história de mulheres que viviam na Grécia Antiga e que repudiavam a ideia de que tinham que casar e ter filhos para serem consideradas naquela sociedade. Então, elas uniram-se e formaram uma república feminina que, segundo consta, ficava na Capadócia, às margens do rio Termodonte.

Elas cultivavam a Deusa da Caça e da Lua, Ártemis, que era livre e independente e grande inspiração para elas. As Amazonas foram imortalizadas por sua coragem de luta quando enfrentavam homens que tentavam submetê-las. No entanto, uma vez por ano, elas dirigiam-se ao território vizinho para engravidarem e, assim, darem continuidade ao seu povo. Apenas as meninas ficavam com as mães. Os filhos eram entregues aos pais.

Uma das personagens mais conhecidas dos quadrinhos, a super-heroína Mulher Maravilha (Wonder Woman), é totalmente inspirada nas Amazonas. No universo dos quadrinhos, ela é filha da rainha Hipólita, princesa de Themyscira. Esta era o nome da cidade, ou capital, da nação das Amazonas, e nos quadrinhos passou a ser uma ilha (também chamada de Ilha Paraíso). É interessante observar que o nome que a Mulher Maravilha adotou é Diana, o mesmo nome da deusa Ártemis para os romanos.

Claro que o mito das Amazonas tem seu lado positivo: independência feminina, consciência da fertilidade e como utilizá-la ao seu favor, grande capacidade de luta e autossuficiência. No entanto, a paciente em questão pode se sentir pouco feminina e colocar a culpa da falta de feminilidade à dificuldade de encontrar um parceiro, afinal, o mito está dizendo que ela não precisa de um companheiro para ser feliz. Isso tudo pode trazer muitos conflitos à mulher que quer casar e constituir família, mas inconscientemente está vivendo um mito que é exatamente o oposto.

Daí, a importância da abordagem junguiana que ajudará a paciente a ter consciência do mito que está vivenciando e, assim, poder transmutar essa energia e trazê-la para o pólo positivo.

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